terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

pardais

O inverno já está no fim.

Me disseram que não nevaria mais. Mas nevou. Disseram que não nevava assim faz mais de 5 anos.
Uma nevasca fina acompanhada por um vento forte e insistente. Os flocos de neve dançavam em redomoinhos. Levamos um pouco mais de tempo para chegar em casa. Tivemos que parar algumas vezes na estrada, o vento e a neve formavam uma cortina branca que debilitava a visão. Pelo caminho eu vi dois carros que haviam saido da pista. Provavelmente seus respectivos motoristas ignoraram as indicações de precaução espalhadas nas placas da rodovia.
Costumamos ignorar avisos.
O tempo é curto demais para hesitação. É muito pouco tempo para fazermos tudo o que queremos. Se ficarmos parando, esperando melhorar o tempo, não vai dar tempo. Se esperarmos por uma visibilidade melhor, podemos ter perdido “a oportunidade”. E não é só na viagem de volta.
Parar. Esperar o tempo melhorar. Seguir em frente.

A paisagem já muda um pouco agora. O gramado amarelado começa a verdejar. Os corvos que gralhavam o tempo todo, murmurando sua canção melancólica, dão lugar aos pardais. Dezenas, em um coral estridente, comemorando o início de um novo período.
O sol está mais sorridente. Menos tímido. Me lembra o sol do Brasil.

Faltam 3 dias para embarcar.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

o mestre dos magos é taoísta

Folga. É um dia bom. Mas passa rápido. O sono acumulado durante a semana inteira só permite que eu fique até às 18:00 na rua, minha cabeça começa a doer, meus olhos ardem como se tivessem areia, minha idéias ficam confusas. O sol já se deitou faz algum tempo. Não, hoje eu não passei frio. Não nevou. Acho que não irá nevar mais. De qualquer forma, comprei um cachecol. Volto para casa pelo cansaço mesmo, e pela noite. Não confio em meu senso de direção no escuro. Em fato, quase não confio nele.

Já são quase 6 da manhã. Não sei se forço o sono, ou se permaneço acordado. Tenho que ir no mercado, tenho que comprar algumas coisas. Tenho que comprar um colchão de ar novo. Meu irmão deixou o antigo perto do aquecedor... bem, ele derreteu. Tenho que comprar outro. Dormir no chão duro apenas com um edredon forrando não é muito confortável. Não que o colchão inflável seja, mas... meu irmão também quer sushi. Na folga dele eu sempre deixo uma bandeija de sushi na geladeira.

Meu tempo aqui no Japão já está acabando. Fico feliz e triste ao mesmo tempo. Triste por deixar meu irmão aqui sozinho. Feliz por voltar à minha vida. Gostaria que o Japão fosse mais perto. Gostaria que pudesse ir e voltar quando quisesse.
Reencontrei um velho amigo aqui. Estranho encontrá-lo justo aqui. Mas eu poderia encontrá-lo em qualquer lugar. Pelo menos é o que ele me diz. Fiquei triste ao vê-lo tão pálido, tão apagado e esquecido. Senti-me culpado por não tê-lo procurado antes. A culpa foi minha por tê-lo deixado partir. A culpa foi minha por ter me esquecido dele.

Não aproveitei o Japão como as pessoas dizem que eu deveria aproveitar. Não fui às montanhas esquiar. Não fui para o Hiropong, a balada mais foda do Japão. Não fui para Utsonomia comprar eletrônicos. Não comi um lámen decente. Não fui até uma casa de massagens tailândesa. Não fiz nada do que me falaram que deveria fazer. Não foi por falta de oportunidade. Foi porque simplesmente não quis mesmo.
Aproveitei o Japão do meu jeito. Sentado no meio do shopping observando as pessoas. Pensando. Olhando pela janela da van a paisagem melancólica, seca, em meio à tanto frio. Aproveitei o Japão conversando com os colegas de trabalho sobre perspectivas e frustações no Japão. Conversando com casais sobre seus relacionamentos nessa vida corrida. Observando velhinhos caminhando na pista de cooper. Conversando com crianças. Sorrindo para crianças japonesas que nunca viram um japonês tão estranho sentado na calçada da frente do mercado.
Esse amigo costumava passar as tardes no banco da praça, abraçado com uma pessoa querida, observando o tempo passar. Observando o sol da tarde cobrir Poços com um calorzinho tímido. Observando as crianças brincarem na praça. Ele costumava me dizer que a única forma de se tornar imortal é permanecer nas lembraças das pessoas que cruzaram pelo seu caminho. Como uma árvore frondosa, permitir que sua sombra acolhedora forneça descanso e fôlego para aqueles que estão cansados desta caminhada. Ele sempre tinha uma resposta boa para tudo. Uma resposta “boa” não é uma tirada. Uma resposta “boa” é uma resposta inspiradora.

Ser gaijin não é fácil. Os japoneses estão dispostos a aceitá-los. Mas para isso o gaijin deve aceitar ser japonês de corpo e alma. É uma troca. Se é justa ou não, não sei responder. O Japão tem muita coisa boa para oferecer. Infelizmente, muita coisa triste também. Mas sempre é assim.
Meu velho amigo gostava de fazer as pessoas se sentirem bem. Fiquei feliz por saber que ele não desistiu disso, mesmo depois de tanto tempo perdido, em uma arca jogada no fundo de algum lugar que só Deus e o diabo sabem.

A paisagem amarelada, queimada pela neve é bonita. Tão enfraquecida, mas pulsando, desejando ser verde. Ela vai ter que esperar um pouco mais. Reunir forças. Esperar a hora certa.
Acho que meu amigo passou tanto tempo fora porque sabia que precisaria de muita força para encarar o mundo novamente. Escolheu a hora certa para reaparecer.

Levo do Japão coisas que poderia conseguir em qualquer lugar, mas ao mesmo tempo, são coisas que só poderiam ser conseguidas aqui. Elas tem gosto de Japão.
Quando eu era mais novo, costumava folhear livros estranhos que pegava na biblioteca só para retirar citações. Sim, eu era um pouco nerd. Um pouco arrogante também. Bem chato por sinal. Era o jeito que eu arranjei para me proteger.
Tem uma frase, dessas que podem ser colocadas naquela página de citações da revista Caras, o livro era sobre Taoísmo eu acho. Yin e Yang, manja aquelas paradas? Forças equivalentes, feminino e masculino, criação e destruição, essas paradas que os chineses gostam. Acho que os asiáticos em geral.
Na verdade, está em voga essa busca pelo equilíbrio. A busca pelo religioso, pelo místico também. O homem descobriu, construiu, explicou tanta coisa, disse que ia dar certo, que ia ficar tudo bem. E olha quanta merda que deu. Não que tudo esteja errado. Mas devemos sempre tentar lembrar qual o projeto inicial. Era o bem do homem, não era? Pois é... mas nos apegamos tanto às coisas ruins que construímos...
Chega de auto ajuda. A porra da frase que eu queria colocar é essa:
“Quanto maior a luz, maior a sombra que pode ser projetada por ela.”
Parece frase do mestre dos magos. Parece auto ajuda. Parece frase da Caras. Do Paulo Coelho. Mas é de um livrinho de um china que viveu há muito tempo atrás. Se não me engano ele tinha umas tretas com o Confúcio. Ouvi isso em uma conversa na mesa de um bar após três cervas. É, esta informação não é confiável.

Meu amigo fica feliz por eu ainda me lembrar dessa frase idiota. Ele adora frases idiotas que parecem profundas. “A profundidade está no fato de você conseguir se sentir tocado por coisas simples e banais.” Ele soltaria uma frase mais ou menos assim. Provavelmente pensando na fonte brega que toca músicas no centro da praça. Provavelmente pensando no abraço da pessoa querida. Provavelmente com saudades.

Faltam 8 dias para embarcar.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

yowai

O homem é un animal fraco. Dos animais que já se arrastaram sobre esse mundo, o mais fraco. Todos os animais sabem o que vão ser assim que nascem. Uma coruja nasce e morre coruja, ela sabe ser coruja. Um lobo nasce e morre lobo, sua mãe não precisa perguntar “e aí, que que vc vai ser quando crescer, lobo ou cordeiro?”. Não, nem precisa. Ele é lobo. Talvez o ornitorrinco passe por crises, mas o ornitorrinco você sabe como é, né?
O homem tem que aprender a ser homem. Tem que estudar para aprender isso. Tem que viver para aprender a ser homem. Tem que sentir, sofrer, chorar. O cachorro não.

É difícil largar um hábito. Ele fica impregnado nas suas ações, no seu “gene”, você não tem o controle sobre a situação. Em fato, você não deixa um hábito, o hábito deixa você.
Estou tentando parar de fumar. É foda.

O homem é um animal fraco. E por isso ele precisa se adaptar para sobreviver. Faz isso melhor do que qualquer animal. Por isso ele é forte? Não sei. Acho isso a representação maior da sua fraqueza. O homem se adapta e adapta o ambiente. Ele modifica a si e o mundo à sua volta. O quê? Isso é força? Não sei. Dá uma olhada por aí, e me diz.

Aqui no Japão acho que pelo menos 60% da população maior de idade fuma. Tá, essa estatística é meio furada, acabei de inventar. Posso dizer que das duas fábricas que trabalhei aqui, pelo menos 60% das pessoas fumavam. É um jeito de sobreviver à correria, ao stress. É uma forma de se adaptar para não morrer.

Mas ele é fraco. Os outros animais precisam de milhares ou milhões de anos para terem algo de “novo” inserido no seu código genético, para assim, transmitir aos seus descendentes. Uma adaptação do homem logo se torna hábito. E hábito meu amigo, é foda de largar.

Quando se vive em um ambiente competitivo, o homem se torna competitivo. O homem se adapta. Competir com alguém fraco é mais fácil do que com alguém forte, isso é óbvio. Então o homem enfraquece o adversário. É um meio de sobreviver.

Para enfraquecer as pessoas à sua volta, caso elas não sejam fracas de verdade, é preciso astúcia. Astúcia o homem tem. Mas isso não é força. Pode vir a ser, porque tudo tem, em si, múltiplas potencialidades. Ok, agora eu assumi, o homem pode ser “forte”.

Não é surpresa encontrar ambientes nos quais as pessoas aproveitam horas vagas para destoar verborragias venenosas sobre as não presentes. Verborragias venenosas soa muito pomposo. “Falar mal” é mais sincero e direto. Você já notou como isso se torna um hábito? E hábito meu velho, é foda largar. A prender a falar mal e ver o mal nas pessoas é uma forma de se adaptar. Quando se torna um hábito, você já está totalmente adaptado ao ambiente.

Sempre quando sinto cheiro da fumaça do cigarro eu tenho vontade de fumar. Confesso, não consegui parar ainda. Eu sou homem, eu sou fraco.
Prometi para mim mesmo parar de fumar. A caminhada é difícil, mas nem tanto. Dá para parar. Eu sei que dá. Prometi parar de macular as pessoas. Isso é foda de largar.
O kyukei é a pausa do cigarro. Muita fumaça, dá vontade de fumar. É a hora de falar mal das pessoas não presentes. Veneno. A peçonha do meu signo vem até a minha garganta, amortece minha língua, escorre pelo canto da boca. Tento engolir. Às vezes respinga uma gota, cai em alguém não presente. Eu sempre me arrependo de ter dito algo. Mas é força do hábito. E hábito você sabe, né?
Mas criei outro hábito. Quando o veneno do escorpião me vem até a língua, estanco o líquido amargo com um cigarro. É meu irmão, hábito é foda.

O homem é fraco. E é porque dentre todos os animais ele é o único que pode ter consciência de suas ações. É fraco porque escolhe o caminho dos fracos.
E antes que eu me esqueça: Jeitinho brasileiro é o caralho. Isso é jeitinho do homem mesmo. Não tem nacionalidade.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

parece cocaína...

...mas é só saudade. Nem é tristeza. É só saudade.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

karague

Ainda era feriado de ano novo. Meu irmão e eu estávamos no supermercado escolhendo o que comer. A opção principal era uma bandeija de sushi ou uma porção de karague, aquele frango empanado cheio de óleo, um frango gordo. Eu já estava enjoado de karague. Havia comido isso durante três ou quatro dias seguidos desde que cheguei. Mas o maldito frango brilhava nos olhos do meu irmão. Ele pegou o karague. Perguntou se eu queria algo, mas a porção de karague seria suficiente para nós dois, não havia necessidade de comprar mais nada. Mas eu odeio karague. E além do mais era ele quem estava pagando, eu ainda não tinha nada de dinheiro, não queria abusar mais ainda da sua hospitalidade. Compramos o frango. Saímos do mercado.
Ventava muito, ainda não era época de neve. Muitas pessoas estava indo e vindo do mercado, afinal de contas era feriado. Uma senhora de bicicleta passou por nós, com uma caixa de compras presa na garupa. Todo mundo anda de bicleta aqui.
Alguns metros à frente vimos a senhora saindo de uma vala que ficava bem no centro da pista em que andávamos. Era óbvio que ela havia caído. Apertamos o passo par ajudá-la. Algumas pessoas passavam, mas não paravam. Estranhei isso. Meu irmão começou a recolher as compras dela, enquanto eu tentava ajudá-la a sair da vala. Ela tentava se esquivar dizendo “daijoubu, daijoubu”, (sem problema, tá tudo bem). Levantou-se, parecia meio irritada, transtornada com a situação. Mal agradeceu. Não subiu na bicicleta, passou a empurrá-la. Talvez porque estivesse machucada, talvez por medo de cair novamente, não sei. Ficamos parados por um tempo sem saber o que fazer.
Muitos japoneses não gostam de receber ajuda assim, sem que eles o tenham pedido. Talvez por orgulho, não sei ao certo. Os idosos principalmente. Ninguém gosta de se sentir inútil afinal de contas, não é?
No fundo da vala ainda tinha um objeto. Era o óculos dela. Agachei, peguei o óculos. Dei alguns passos rápidos em direção da senhora, dizendo “obassan, obassan, meganê”. Ela parou e pegou os óculos. Desta vez um breve sorriso se esboçou em seu rosto castigado pela idade e pelo vento frio. Agradeceu e seguiu em frente.
Ela seguia pela mesma direção que nós deveríamos ir. Pensei que seria um pouco incoveniente para ela se nós passássemos por ela novamente. Bati no ombro do meu irmão e disse, “vamos testar um caminho diferente?” Nos viramos e tomamos outra direção.
Ficamos em silêncio durante um tempo. Não sei o que meu irmão pensava. Eu pensava no quanto o orgulho pode atrapalhar as coisas. Mas também no quanto orgulho pode fortalecer. Na verdade, saber a hora certa de recusar e aceitar é o mais difícil. No final das contas tudo se acerta com um sorriso, tudo se entende. Mas às vezes nem vemos esse sorriso, por falta de tempo, oportunidade ou vontade mesmo. Daí tudo vai pras cucuias.
O silêncio foi quebrado com meu irmão dizendo: “hum, até que sushi seria legal, hein?”. Não precisou dizer mais nada. Me virei e fui em direção ao mercado novamente. Com a cabeça baixa eu disse: “Odeio karague.” Ele respondeu: “É, eu sei. Tinha me esquecido disso.”

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

sequênciadesconexadepensamentosnumanoitenojapão

Aqui faz frio. Engraçado, eu sempre gostei do frio. Mas o frio daqui me incomoda.
Todas as quintas alguns flocos de neve caem, poucos, mas caem. Talvez neve todas as tardes aqui, eu não sei, eu não posso ver em outros dias. Apenas nas quintas, porque é minha folga. Os flocos de neve tocam minha pele e imediatamente derretem. De vez em quando, um cai nos meus lábios, o sabor não é ruim.
Sempre caminho nas quintas procurando o sol. Sempre saio de casa com agasalhos insuficientes. Eu sempre cometo o mesmo erro, e isso já faz algumas semanas. Talvez não tenha boa memória, talvez goste de errar, talvez goste do frio no final das contas, talvez eu deva comprar um cachecol.
O sol daqui é pálido e tímido. Como todo japonês. É verdade, aqui é a “terra do sol nascente”. Mas quando penso nessa frase sempre me vem outra: “mas aqui o sol morre primeiro também”. E morre mesmo. A noite chega cedo aqui.
De noite ninguém fica na rua. O vento gelado, que corre pelas avenidas confusas e pelos quarteirões “não quadrados”, espanta todos para dentro de suas casas de madeira e papelão. Alguns se arriscam a enfrentar o frio apenas para comer lámen quente em barraquinhas. Outros correm para as vans para mais uma madrugada de trabalho na fábrica.
A fábrica é cinza. Parece filme de ficção científica. Tem luzes, sirenes, buzinas, painéis, botões. Pessoas de uniformes, capangas. Vocês já notaram que em nenhum filme se conta a história dos capangas? Você já parou pra pensar: “hey, por que esse cara trabalha para o vilão? Será que o vilão paga bem? Ou é por causa do uniforme legal? Por que ele ataca o mocinho mesmo sabendo que o mocinho é bom? Será que esse capanga tem família? Por que os capangas morrem aos borbotões e ninguém se importa?”
Eu sou um capanga da fábrica. Eu não sei por quem estou lutando ou contra quem. Só faço o que me pedem. Será que é assim que os capangas dos filmes se sentem? O pior é que o meu uniforme não é legal.
Ah, é verdade, o frio. O frio daqui me incomoda. Porque ele não é o frio do Brasil. É o frio daqui.